Toinho tinha uma bicicleta. Não sei de quem ganhou: da mãe, do pai ou da madrinha. Só sei que ele tinha. Tinha e vivia por ali, subindo e descendo, indo e vindo, correndo e pedalando. Era dele. Eu gostava de ver e pensava em andar naquela bicicleta. Não sei se às vezes emprestava para alguém, deixava dar uma voltinha. Nunca pedi, nem vi, por isso não sei.
Um dia Toinho alardeou que ia vender a bicicleta. Botei olho grande e desejei. Imaginei-me dono e legítimo possuidor da magrela. Imaginei-me indo e vindo, subindo e descendo, correndo e pedalando. Falei pro meu pai comprar aquela bicicleta. Ele disse, não! não vou comprar. Dei um tempo, não insisti, talvez ele mudasse de ideia. Que nada.
Naquela época o mercado já vivia dias de concorrência acirrada. Por isso, quando voltei ao assunto, meu pai retrucou: nada de bicicleta! Vou comprar uma sanfona. Putz! Um conhecido do meu pai, que tinha uma sanfona de 80baixos (daquela bem grandona, tipo profissa) também botou placa dizendo: Vende-se uma sanfona. Foi o fim!
Sanfona? Como assim? Não houve tempo para a resposta. No dia seguinte, eis-me sentado numa cadeira tentando segurar aquele bicho pesado. Um lado da sanfona sobre a perna esquerda e o outro pendurado, quase batendo no chão. Era pra eu tocar?!. Tentei!!. Puxava para cima o lado dos baixos e, de tão pesado, deixava cair. Segurava com força o lado direito, o lado do teclado. Em pouco tempo fui apertando as teclas, foi saindo som e loguinho loguinho saiu parabéns pra você.
Tem futuro. Vai tocar. Vou tocar. Tenho futuro. Soletrei outros pedaços de música e, de repente, já estava eu tocando uma música da igreja. Só do lado direito da sanfona, do lado melodia. Do outro lado eu não conseguia nada, apesar de ser canhoto, por causa do peso.
A música dizia assim:
Andei tão longe do Senhor, assim eu quis andar.
Até que encontrei o amor em seu bondoso olhar.
Seu maravilhoso olhar, seu maravilhoso olhar.
Transformou meu ser e todo o meu viver. Seu maravilhoso olhar...
Facilzinha de tocar. Melodia simples. Em casa todo mundo dizia: toca aquela. E aquela de novo. Que tal tocar outra... aquela. Aquela ficou batizada de "vivi tão longe". Toca vivi tão longe.. toca vivi tão longe... não havia outro pedido. De fato, eu vivia tão longe da bicicleta, era de dar dó. Meu pai sonhava com um Sivuca e eu sonhando com o Lance, vivendo tão longe... da minha bicicletinha. Ai meu Deus!.
Pronto. Estava acertado. No fim de semana iríamos pra casa do meu avô. Perto dali iria acontecer um culto. Eu iria tocar e a minha irmã iria cantar. Decidido. Meu pai, minha mãe e as outras irmãs estariam lá para assistir a Edson e Edna - a dupla! Foi assim. Chegamos a fazer duas apresentações. E foi só. Era bonitinho, os filhos da irmã Cleonice e de Seu Heleno tocando. Que fofo! Era bonitinho e desafinadinho e ruinzinho e todos os outros inhos. Mas era fofo, o que valia.
Que fofo que nada! Eu morria de vergonha e de cansaço. Aquilo era pesado demais. Eu não conseguia nem ficar de pé. Seria muito melhor ter uma bicicleta. Meu Senhor com seu maravilhoso olhar, me ajude a ter uma bicicleta. Cadê a minha bicicleta. Eu não tinha bicicleta, eu tinha uma sanfona. Será que era porque eu tinha andado longe do Senhor? Por que em vez de transformar o meu ser, o Senhor não transformou o ser do meu pai para ele me dar uma bicicleta? Não adiantava perguntar.
Esperei. Desisti da sanfona e nem lembro do que foi feito dela. Algum tempo depois ganhei uma bicicleta. Meu pai alegou, e eu concordei com ele, que não tinha comprado aquela outra porque era pequena demais pra mim. Logo, logo, ela estaria perdida porque eu iria crescer. Sério? Eu iria crescer? Jura? Que nada! Eu era pequenininho e franzino. Minhas duas irmãs eram mais novas e mais altas. Certamente mais bonitas, mais inteligentes, mais tudo. Eu era aquela coisinha minguada. Uma vez meu pai chegou a comentar: a quem puxou esse menino? Anão desse jeito!
Meu Deus! Será que sou anão? Não. Não sou anão. Anão é pequeno e tem a bunda empinada. Eu não tinha bunda, era magro feito um palito, a galera até tirava onda me chamando de tabica. Era pequeno, beleza. Mas não tinha bunda empinada, não poderia ser anão. Que alívio! Quero crescer. Pai, o que faço pra eu crescer? Quer crescer? Vou dar um jeito. Torou um pedaço de pau, acho que um cabo de enxada ou de picareta, pregou numa porta, de um lado a outro e disse: Se quiser crescer, fique pendurado aí.
Eu não queria mais bicicleta. Eu queria era ficar pendurado e crescer. Doía os braços. Eu quero crescer, tenho que ficar pendurado. Ficando pendurado eu cresço. Não pensava em outra coisa senão ficar pendurado e crescer. Ganhei a bicicleta. Uma bicicleta grande. Talvez para me estimular a crescer. Eu quase não conseguia subir na magrela, mas eu tinha uma bicicleta. Pronto.
Agora eu andava perto do Senhor. O Senhor tinha transformado meu pai, tinha transformado a mim e transformado o mundo. Eu estava contentão! Eu tinha uma bicicleta. Encontrei o amor em seu bondoso olhar, enfim. Um dia, andando por ali, nem tão longe de casa, fui atropelado por um caminhão. Meu Deus! Lá estava eu, outra vez, longe do Senhor. Quem anda perto do Senhor não é atropelado por um caminhão. Será que foi castigo? Valha-me Deus! Se eu estivesse sentadinho... tocando sanfona... não teria sido atropelado. Caraca!
Cheguei em casa com a bicicleta toda estrupiada. A roda quase quadrada, minhas canelas sangrando. A bicicleta ficou parada por uns quatro meses. Eu tinha medo de andar de novo e acontecer outra tragédia. Eu precisava ficar perto do Senhor, nada de andar de bicicleta. Cresci. Mas foi muito tempo depois, só quando comecei a jogar futebol. Meu pai esqueceu o Sivuca, eu esqueci o lance de ser o Lance e agora eu queria ser o Rivelino ou o Djalma Santos. Jogaria no Palmeiras. Meu pai falou. Tá falado! Assim será!
O tempo passou. A vida é assim, passa como um pisca-pisca, segundo a Emília.* Piscou e foi sanfona! Piscou e foi bicicleta! Piscou e foi futebol! Piscou e hoje é carro e bicicleta e vôlei, sem a menor pretensão de ser um Giba. Parou de piscar e se foi o autor e mentor destas proezas, vítima de um assalto, há 24anos.
Tudo vai piscando e eu me ponho a lembrar e a escrever. Lembrar dele e destas coisas que vivemos juntos me bate um banzo danado. Mas ninguém morre de banzo. Digo de mim o que já disse um poeta "...se não morreu de banzo na vida, talvez morra de amor na morte..." Eis a esperança! Virou hipótese!
*A vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem para de piscar, chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos - viver é isso. É um dorme-e-acorda, dorme-e-acorda, até que dorme e não acorda mais. A vida das gentes neste mundo, Senhor Sabugo, é isso. Um rosário de piscadas. Cada pisco é um dia. Pisca e mama. Pisca e anda. Pisca e brinca. Pisca e estuda. Pisca e ama. Pisca e cria filhos. Pisca e geme os reumatismos. Por fim, pisca pela ultima vez e morre.
- E depois que morre? perguntou o Visconde.
- Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?
- É.
Memórias de Emília - Monteiro Lobato